SONHAR ILHAS
Enunciado de projeto para residência artística,
(Recusado pelo Instituto Sacatar)
Jul 2022













Sonhar ilhas, com angústia ou alegria, pouco importa,
é sonhar que se está separando, ou que já se está separado,
longe dos continentes, que se está só ou perdido;
ou, então, é sonhar que se parte do zero, que se recria, que se recomeça.


_ Gilles Deleuze



É certo que o mundo mudou desde que Deleuze escreveu, nos anos 50, “Causas e razões da ilha deserta”. Entretanto seu texto ainda guarda o poder de uma provocação, um ato-falho, uma antítese poética para imaginar o mundo e a forma como vivemos. 

Tornar a geografia metáfora para questões urgentes que nos assolam, pensar a ilha como simulacro para as formas de viver vidas fechadas, ensimesmadas, das sociedades vigiadas, fronteiriças e narcísicas que caracterizam o mundo capitalista que é o nosso mundo. Refletir sobre o significado de fronteiras, isolamento e separação.

Poeticamente, uma ilha fala de solitude e solidão mas politicamente a ilha nos sussurra algo sobre isolamento e alienação. “Deve parecer-nos filosoficamente normal que uma ilha esteja deserta”. [ Ilhas desertas ainda existem ou todas as ilhas têm dono, sendo portanto irremediavelmente cercadas e vigiadas?]

Neste momento frenético,  somos obrigadas a reexaminar nossa relação com a natureza, sob as ameaças que nos assombram. Quando pandemias e catástrofes climáticas a se abaterem sobre o planeta nos espreitam, somos forçadas a uma mudança radical de perspectiva sobre comunidade, isolamento e fronteira. Somos livres ainda? O fomos um dia? (Estamos ilhadas/os?) Quanto tempo ainda nos resta?

Pensemos a geografia. A passiva autonomia do grande corpo da terra. Paisagem esculpida e educada, explorada, contorcida e exaurida.   “Então, a geografia se coligaria com o imaginário”. E, então, a ilha. Cercar ou deixa-la livre e aberta? Quem entra e quem sai? Não seria tal eventualidade - a Ilha - também um privilégio? Fechar-se em ilhas. Ilhas privadas, lugares de benefícios, poder e segregação.


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Finalmente, Itaparica, esta, uma, especifica ilha. [Deserta mas] Povoada por comunidades históricas que foram se transformando e se ajustando à exploração da terra e ao martírio das gentes, numa contínua colonialidade. s
Sem fim. Simulacro de projeto turístico-exploratório marcado pela desigualdade social, falido, Itaparica dorme e acorda, ao longo de 5 séculos, num estado de colonização eternamente inacabada.

Sobre tal cenário, paira a ameaça da ponte. Que aniquila seu caráter de ilha para anexa-la ao continente, violentando a natureza e seus espíritos, escancarando suas entranhas que o mar circunda.  E assim, “Mais do que um deserta, ela é desertada. Desse modo, mesmo que ela, em si mesma, possa conter as mais vivas fontes, a fauna mais ágil, a flora mais colorida, os mais surpreendentes alimentos (…) apesar de tudo isso ela não deixa de ser a ilha deserta.”

Brotar, crescer, florescer, declinar e morrer. “Separação e recriação não se excluem, sem dúvida.” “Para modificar tal situação, seria preciso operar uma redistribuição geral dos continentes, do estado dos mares, das linhas de navegação.” E então, como os ciclos da vida ocorrem na ilha? Como a ilha controla e gerencia a vida, a natureza, os desejos? Cultivando? Destruindo? Liberando seu curso? Espontâneo, numa sociedade hiper-explorada, não implicaria decadência, descaso e aniquilamento [uma eterna noite colonial, como diria Airton Krenak?]?

São provocações para imaginar a destruição das vidas originárias - o findar do planeta - como resultado das ramificações entre atropoceno e colonialidade, processo o qual testemunhamos/sofremos agora o apogeu, com a iminência do aniquilamento da vida na Terra. “Assim, o movimento da imaginação das ilhas retoma o movimento de sua produção”.

“Os homens que vêm à ilha, ocupam-na realmente e a povoam; mas, na verdade (...) se fossem suficientemente criadores, eles apenas dariam à ilha uma imagem dinâmica dela mesma, uma consciência do movimento que a produziu, de modo que, através do homem (Sic), a ilha, enfim, tomaria consciência de si como deserta e sem homens (Sic). A ilha seria tão-somente o sonho do homem (Sic), e o homem (Sic) seria a pura consciência da ilha.” 

Pensamos então a ilha como o sonho da mulher, A ilhA, substantivo feminino, prerrogativa da língua, a mulher a pura consciência da ilha. Então, reescrevo:
‘Os homens que vêm à ilha, ocupam-na realmente e a povoam; mas, na verdade (...) se fossem suficientemente criadores, eles apenas dariam à ilha uma imagem dinâmica dela mesma - feminina -, uma consciência do movimento que a produziu - no ventre da Terra -, de modo que, através da mulher, a ilha, enfim, tomaria consciência de si como deserta e sem homens. A ilha seria tão-somente o sonho da mulher, e a mulher seria a pura consciência da ilha.’ 


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Esta proposta toma Itaparica como laboratório para refletir sobre a avidez com que exaurimos a natureza, talvez de forma irreversível, considerando os impactos da ponte SSA-Itaparica como um avanço violento do neoliberalismo sobre a paisagem e a geografia, destruindo as formas de vida e estratégias de sobrevivência de seus habitantes e da natureza. A ponte é a voracidade do capitalismo em sua forma apocalíptica. Este projeto propõe a imaginação como estratégia para um modelo de solidariedade ecológica e decolonial que contemple um pensamento utópico abrangente da ilha, intersseccionando passado, presente e futuro, pois, mais uma vez citando Krenak, “o mundo ainda está cheio de pequenas constelações de gente que dança, canta e faz chover”. E é com as gentes, com as mulheres e com a natureza que a utopia floresce.

“Havia ilhas derivadas, mas a ilha é também aquilo em direção ao que se deriva; e havia ilhas originárias, mas a ilha é também a origem, a origem radical e absoluta.” (IBDEM)

Amsterdam Julho 2022.


Obs. Todas as aspas são para Gilles Deleuze “Causas e razões da ilha deserta”, exceto as duas para Ayrton Krenak, já creditadas no próprio texto.