PORQUE QUANDO DÓI, A GENTE CHORA
Journal, 1998





Cheguei à Europa em 98, pouco antes da dolorosa Copa da França. Apesar de ter me aventurado, aos 14 anos, como goleira de um time de meninas inventado para driblar a pasmaceira da pequena Queimadas, no sertão da Bahia, sempre me senti distante do futebol. Exceto durante as copas do mundo. Fui, admito, uma jogadora medíocre, cuja carreira nos gramados encerrou-se desastrosamente na segunda e última partida oficial jogada pelo nosso time no estádio lotado da vizinha Santa Luz.

Àquela altura já tínhamos feito fama vencendo o jogo de estréia e arrebatando os corações entusiasmados da pequena multidão que foi nos assistir num luminoso domingo à tarde, no campo de chão batido do Beira-Rio, às margens do Itapicuru. No íntimo, sabíamos que as adversárias eram muito superiores e quem já tinha nos visto treinar (um time contra o outro, por falta de reservas), torcia por elas. Aquelas meninas levavam tudo aquilo muito à sério, defendendo com unhas e dentes as camisas tamanho grande que, por falta de verbas para adquirir uniforme próprio, tomavam emprestadas dos rapazes do 13 de Junho.

O nosso, na verdade, era um time de garotinhas mimadas que deram um jeito de levantar fundos para comprar o uniforme oficial do Esporte Clube Bahia, novinho em folha, vestindo perfeitamente bem nos nossos tamanhos (tratava-se do uniforme junior do Bahia mas, ainda que masculinas, aquelas camisetas nos caíram como luvas!). Entramos em campo com os rabos-de-cavalo ao vento, baton nos lábios, shorts curtinhos e as vestes tricolores “tinindo” de novas (minha camisa azul de mangas compridas era gloriosa!). As adversárias não se davam à tais futilidades. Estrearam com as camisetonas verde-e-brancas do 13, shorts largos e nada de baton. Estavam ali para jogar futebol!

Por algum milagre inexplicável, vencemos a partida com um lindo gol de Regina, que saiu em disparada pela lateral esquerda driblando 3 ou 4 jogadoras do 13 até emplacar. Pouco antes, em outro lance espetacular, Tatiana matara no peito uma bola que vinha certeira na minha direção, defendendo heroicamente a zaga e me poupando de ter que pôr à prova meus parcos talentos de goleira justo no dia da nossa estréia. Em Santa Luz, mesmo com todo o estádio tomado de simpatia por nós – o baton e o uniforme tricolor, sem dúvida, ajudavam – a sorte nos abandonou e eu caí em prantos com o joelho sangrando, ao me atirar para defender um pênalti segundos depois que a bola entrou no gol, por obra de um chute magistral da atacante Diva, marcando 1X0 para o 13 – o chute mais bombástico que conheci! Em tempo: nosso time tinha lá seus talentos. Alem de Regina e Tatiana, contávamos com a garra de Denísia, Leila, Solange, Demilde (Galega), Ceiça, Kátia (infelizmente, não me ocorre agora a escalação inteira, orquestrada pelo querido e rigoroso técnico Heitor)… Mas, justiça seja feita, nada se comparava às jogadoras do 13, dentre as quais, uma craque memorável que poderia ter feito carreira, se o mundo do futebol não fosse tão exclusivo dos homens: Maria Elita (cujos dribles, aliás, tornaram-se lenda)!

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Tudo isso durou mais ou menos um ano e, infelizmente, não rendeu nem mesmo uma fotografia. Logo cresci, fui ler, namorar e pouco tempo depois me mudei para Salvador e entrei na universidade, onde iria descobrir que a vida era muito mais complexa do que nos ocorria enquanto brincávamos pelos abençoados campos de Santo Antônio das Queimadas. Tomei conhecimento da tortura, dos assassinatos e desaparecimentos nos porões da ditadura militar, trucidando estudantes e trabalhadores que lutavam contra o regime instalado à força no país desde 64. A repressão no Brasil teve seu auge por volta da Copa do México, em 1970 – quando a euforia pela conquista do tri-campeonato serviu para abafar a dor e os clamores dos torturados e de suas famílias – e durou enquanto durou a ditadura, passando pelas copas da Alemanha, da Argentina e da Espanha, esta última, nos estertores do regime. Os tempos já eram os da luta pela anistia para presos e exilados quando eu, tardiamente, compreendi que aquele ano feliz em que inauguramos o futebol feminino no sertão da Bahia (entre 74 e 75), às margens do ainda puro e belo rio Itapicuru, tinha sido dos mais tenebrosos da nossa história recente, e isso mudou para sempre a minha maneira de ver o mundo.

Foi com as esperanças renovadas pelo fortalecimento da luta pela democracia que me reaproximei do futebol, por obra e graça da lendária seleção de 82. A devoção de meu irmão e de amigos queridos e a ocorrência de craques de esquerda como o eterno Doutor Sócrates (por quem éramos todos apaixonados), foram decisivas para me alinhar, de coração aberto, à torcida brasileira, sempre sedenta por mais conquistas. Era uma obsessão nacional: nos viciamos em ganhar a copa do mundo de futebol e nos plantamos orgulhosamente no lugar de seus maiores campeões. As conquistas nos gramados fortaleceram nossa identidade e elevaram nossa auto-estima, nos proporcionando alegria e pertencimento, emoções das quais não pudemos mais prescindir. E quando se está fora do país, sente-se tudo isso de forma ainda mais incrível!

No final dos anos 90, quando cheguei à Holanda, pela primeira vez na vida estrangeira sem ser turista, logo compreendi que, não fosse pelo futebol – esse fenômeno através do qual arregimentamos simpatizantes de norte a sul do globo – e seríamos praticamente desconhecidos no estrangeiro. Foi apenas a partir do governo Lula que o Brasil passou a gozar de crescente visibilidade e interesse lá fora. Eu ignorava os ânimos futebolísticos europeus e mais especificamente, holandeses, experimentados in loco, e não podia sequer imaginar que minha primeira Copa do Mundo fora de casa (já estou na quarta!) precipitaria constrangimentos que, como imigrante, mais cedo ou mais tarde eu teria que enfrentar. Aquela foi uma fase de descobertas.

Na multicultural Amsterdam, abrigo de cento e tantas nacionalidades, onde jovens e crianças abusavam das camisas canarinho, tive contato com a rivalidade, ou melhor, a aversão argentina ao “país do futebol” – que eu acreditava não passar de lenda – e experimentei o clima levemente hostil que infestou o ar quando eliminamos os holandeses nas semi-finais. Porem, de longe, a mais desagradável dentre todas as novas experiências foi ter que confrontar o rodrigueano “complexo de vira-latas” de conterrâneos expatriados - tão badalado agora, nesta Copa do Brasil. À bem da verdade, em 1998 o Brasil vivia um período tenebroso, porem o teor do escárnio não era de crítica ao desemprego, às privatizações e à subserviência ao capital financeiro internacional, impostos ao país pelo doloroso governo FHC. Sustentava-se, lamentavelmente, em questões muito mais profundas, de rejeição às próprias origens.

Eu festejei em casa todas as vitórias da seleção e me preparei para sairmos vencedores da final contra a França. Tudo indicava que era chegada a hora do penta: mas que doce ilusão! A partida se iniciou já com ares de que algo estava muito errado e nos 90 minutos que se seguiram, assistimos à um time murcho que arrasou nossos egos, presenteando os holandeses com o doce gosto da vingança – apesar de não simpatizarem com a nova campeã, os “laranjas-mecânicas” viveram a sua revanche, já que fomos nós a eliminá-los daquela copa. Durante todo o jogo, permanecemos sem palavras, sem acreditar que estava acabado. O que acontecera com a seleção que vinha demolidora? O que acontecera com Ronaldo Fenômeno? A sensação de que tínhamos sido enganados era cortante (não fazíamos idéia do que nos esperava na Copa do Brasil, 18 anos mais tarde, ou seja, não fazíamos ideia de que o que era ruim ainda podia piorar muito…). Foi então que a fotografia me salvou.

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A idéia me ocorreu rapidamente: uma série de retratos com os brasileiros locais, no calor da derrota: nós, os grandes favoritos, nós que havíamos eliminado a Holanda, nós tão acostumados às nossas vitórias… Fiz um rápido telefonema ao editor da Revu, uma importante revista semanal holandesa, que gostou da proposta mas me advertiu de que eu teria apenas 24 horas para entregar as fotografias à tempo para o fechamento daquela edição. Mais que depressa saí em campo com a câmera, filmes diapositivos, uma fonte de luz e um rebatedor. Não foi fácil convencer novos amigos e conhecidos a posar, mas sempre houve quem topasse vestir novamente a camiseta amarela para a foto. Foi um dia emocionante, correndo contra o tempo sozinha com minha bicicleta de um lado à outro da cidade sob chuva fina, lutando para realizar um número razoável de retratos ao tempo em que exorcizava a derrota e rezava para que a revista quisesse o trabalho!

Recém-chegada à Holanda, eu buscava um caminho na fotografia, mas ainda não seria dessa vez. Naqueles remotos tempos analógicos, só consegui deixar os filmes no laboratório para serem revelados na manhã do segundo dia de trabalho, perdendo assim o deadline.  Na noite anterior, bem depois do horário comercial, ainda fotografava figuras como Jacob Kurc, na época dono do “Canecão”, espécie de inferninho verde-amarelo, no centro de Amsterdam, onde Romário batia ponto quando jogava no PSV. Torcedor fanático, amigo do próprio Romário e de outros jogadores famosos, Jacob chegou tarde para as fotos e, em lágrimas, hesitou ao vestir a camiseta suada coberta de autógrafos dos craques brasileiros, desolado porem colaborativo. Mas, infelizmente, para a revista, o prazo já havia se esgotado e o trabalho estava perdido.

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As fotos estão arquivadas desde então. Mesmo depois que o tempo passou e que vencemos a Copa de 2002, no Japão, nem assim tive a oportunidade de mostra-las. Às vésperas da Copa da Alemanha, em 2006, considerei exibi-las em uma exposição coletiva sobre futebol mas, na eminência de uma nova copa do mundo, quem gostaria de ser confrontado com o fantasma da derrota? Expus outro trabalho e segui com a série guardada. Agora, que a Copa do Brasil resultou um sucesso  (apesar do clima de derrota prévio que infestou o ar espalhado pela grande imprensa quanto à nossa capacidade logística e, subliminarmente, quanto ao nosso valor como nação – clima esse que logo mostrou-se infundado) penso que a série já não assusta, já que o maior fantasma de todos, fomos obrigados à enfrentar em casa, materializado na histórica derrota sofrida pela seleção brasileira em 2014, a grande favorita nas apostas e nos nossos corações…

Assim como a fotografia, o futebol guarda elementos-surpresa para apresentar apenas e tão somente na hora da verdade – ou no momento da revelação. A metáfora se refere diretamente à era analógica, mas serve tambem à digital, já que a fotografia permanece sendo o resultado de uma conjunção de cálculos e planos mas tambem de coincidências imprevisíveis. Todos sabemos que o resultado do trabalho realizado encontra a sua própria maneira – às vezes surpreendente – de se revelar – e isso é o que transforma tudo em um grande encantamento. Alem de um aprendizado inestimável sobre deadlines em fotografia comercial, a Copa de 98 tambem muito me ensinou sobre identidade e humildade, renovando a minha eterna busca por recordar e registrar momentos e emoções fugazes que iluminam o que somos. Sejam vitórias, sejam derrotas, sejam pequenos acontecimentos, tais memórias são inestimáveis. O gol de Regina, o gol de Diva, a menina brincando de ser goleira, suas lágrimas na hora do pênalti. Infelizmente, não há fotografias da nossa aventura no mundo dos homens – o que talvez pudesse evitar que um dia essa pequena história viesse a se perder inexoravelmente no tempo. No entanto, as lágrimas derramadas coletivamente seja na França, em 1998, no Maracanã, em 1950, ou no Mineirão, em 2014, essas não se perderão por fazerem parte da memória brasileira expandida que será contada às novas geracões incontáveis vezes, pelos séculos e séculos.

Neyde Lantyer, 2014.

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O time do Bahia: Eu, Tatiana, Regina, Denísia, Leila, Solange, Demilde (Galega), Ceiça, Kátia, Ilka, Lucinha, Leide

O time do 13: Maria Elita, Diva, Ivete, Odineide, Sandra de De Nilza, Denise, Anaíldes, Neuma.