Artigo
Rrevista Caros Amigos
2015
O ESPELHO DE HERÁCLITO
Tive o prazer de estar presente à abertura do grande prêmio de fotografia contemporânea de Portugal, o Novo Banco Photo, no Museu Coleção Berardo, em Lisboa, ao qual concorre este ano o brasileiro Ayrson Heráclito. Originalmente destinado a artistas portugueses, o prêmio foi expandido aos demais países lusófonos a partir de 2011.
Alem de Heráclito, natural de Macaúbas-Bahia, concorrem Ângela Ferreira, de Maputo, Moçambique, e Edson Chagas, de Luanda, Angola. Ambos os artistas luso- africanos têm trajetórias destacadas em premiações e eventos seminais para as artes contemporâneas, a exemplo da Bienal de Veneza. Diversas entre si, suas obras se alinham esteticamente à fotografia artística contemporânea européia ao tempo que, em maior ou menor grau, se relacionam com o debate pós-colonialista, que trata da desconstrução da hegemonia cultural ocidental, debate esse que tem permeado a atmosfera político-filosófica nas ex-colônias portuguesas da África, em décadas recentes.
A presença de Ayrson Heráclito com a obra “A Reunião das Margens Atlânticas” é uma oportunidade para refletirmos sobre o lugar da arte brasileira em relação à produção das ex-colônias portuguesas. Para isso, é necessário nos atentarmos para o próprio conceito de ‘lusofonia’, que ultrapassa a unidade utópica da língua, compreendendo que assim como lusófonos são aqueles que falam o idioma luso – ou seja, todos os países que foram colonizados por Portugal – lusófonas são tambem, por efeito, as marcas da colonização, sua memória e as identidades culturais que se formaram no seu esteio, tanto quanto suas feridas, com todas as consequências extensivas à várias gerações. Tais questões estão profundamente e de todas as formas, relacionadas à África e aos nossos vínculos históricos com aquele continente.
O REENCONTRO DAS MARGENS
A “Reunião das Margens Atlânticas”, como o título antecipa, é um esforço artístico por promover um ‘reencontro’ simbólico das duas bordas do oceano que guardam, em seus lados opostos – e no caminho que as separa (e une) – uma história viva. As oito fotografias e os dois vídeos exibem uma performance que executa um ritual de “sacudimento”, como os que são realizados nos candomblés da Bahia, que consiste de tomar nas mãos ramos de certas folhas e batê-los nos cantos da casa para afugentar os maus espíritos e as energias estagnadas.
Não por acaso, o projeto expositivo de Ayrson Heráclito se apresenta na forma de um espelho, confrontando imagens realizadas em Salvador-Bahia, e na ilha de Goreé, no Senegal. As fotografias coloridas, primorosamente fotometradas para produzir um chiaroscuro em tons quentes, ampliadas em escala humana, junto aos vídeos de dimensões e tonalidades similares, encaram uns aos outros no espaço de uma sala escura, de um lado, Brasil e do outro, África. Luz-e-sombra, cores, formas, o movimento repetitivo dos performers, o som que produzem nos vídeos e a organicidade do conjunto provocam um impacto emocional imediato, em contraste com os trabalhos expostos nas salas anteriores, que demandam mais tempo para serem assimilados. Imbuídos de uma estética mais “racional”, com reminiscências da Escola de Dusseldorf, a moçambicana Ângela Ferreira e o angolano Edson Chagas tambem apresentam obras de forte conteúdo dramático, seja diretamente relacionadas aos tempos coloniais (Ferreira), seja por meio de uma narrativa minimalista sobre as contradições das sociedades de consumo globalizadas (Chagas).
ÁRVORES SAGRADAS, EDIFÍCIOS POLÍTICOS
Para alem de eficiente estratégia estética, ao confrontar a arquitetura e a natureza da partida e da chegada dos povos traficados da África ao Brasil para nunca mais retornar, o ‘espelho de Heráclito’ parece pretender que, colocados face a face, os opostos se entrelacem. Primordialmente, “A Reunião das Margens Atlânticas” exuma um drama latente, cuja força emerge do vigor das imagens e do ritmo constante da performance que induz o espectador à imersão no ritual no qual três homens, usando vestes brancas – entre eles o próprio artista, atuando como um sacerdote, a liderar o “exorcismo” – buscam, com a “limpeza” das edificações, uma saída para a história. É então que o espelho se revela como a base conceitual da obra, a ‘religar’ duas pontas de uma mesma narrativa deixando ver, no seu centro, um abismo.
Os signos evocados são familiares: homens negros contemplando o mar remetem, por si só, ao vínculo histórico, emocional e indomável com um passado que, mesmo velado, nos diz respeito: o mar como distanciamento talvez seja a mais poderosa das metáforas para a escravidão africana no continente americano. Por sua vez, a presença das árvores simbolizando eternidade lembra o anseio por identidade e pertencimento. Porem, a arquitetura é particularmente comovente, dado o poder evocativo das duas edificações coloniais ligadas para sempre pelo fio invisível de suas funções complementares. Espelhadas na arte assim como na história, a Casa da Torre e a Maison des Eclaves guardam em suas efígies a força vil de seus desígnios. Como bem nos lembra Ângela Ferreira na sala ao lado, “os edifícios podem ser lidos como textos políticos”. É nessa perspectiva que os volumes imponentes, luz-assombreados pelo sol baixo e dourado, são reduzidos ao seu conteúdo simbólico: a desumanização de milhões de seres humanos, circunscritos aos seus corpos, explorados como máquinas de trabalho em uma terra distante.
MÚLTIPLOS MUNDOS
Ayrson Heráclito é um artista em movimento cuja presença vem se multiplicando em aparições nos mais proeminentes eventos de arte contemporânea, dentro e fora do país. Trabalhando com materiais tão inesperados quanto emblemáticos da herança africana no Brasil, entre eles azeite de dendê, carne seca, verduras, raízes e folhas, o artista se lança no desafio de fazer a revisão representacional de toda uma tradição artística. Suas instalações, performances e objetos de inspiração tropicalista conjugam a iconografia sagrada afro-brasileira com reminiscências neoconcretistas, perceptíveis tanto nas estruturas quanto nas subjetividades. Sua obra é a epifania de um artista em processo de reconciliação com um legado cultural que foi recalcado – no sentido freudiano do termo – pelo conservadorismo e o racismo estruturais da nossa sociedade.
Arte é processo, é experiência imaginativa que nasce do diálogo, não monólogo. Um dos países mais negros do mundo, seguimos negando a basal contribuição africana na formação da nossa cultura, por se tratar de idéia conflitante com a imagem que o Brasil insiste em manter sobre si mesmo. Consequentemente, a arte afro-brasileira se desenvolveu como prática de resistência, idealizando uma herança cultural pouco conhecida, com escassa ou nenhuma base institucional, pouco se aventurando pelo contemporâneo. Entretanto, o espelho de Heráclito abre uma fenda política no seio dessa tradição. Ao confrontar África e Bahia evocando as feridas da escravidão, ele dialoga com a nova geração de artistas provenientes das periferias do mundo, especialmente da África, à exemplo de seus concorrentes ao prêmio Novo Banco Photo 2015, uma geração que tem ocupado os principais palcos da arte com reflexões sobre identidade, injustiça social e história, forjadas em trocas culturais intensas entre os múltiplos mundos contemporâneos, trocas essas das quais tambem nós precisamos fazer parte. Não há remédio para curar a história. Porem, o lugar reivindicado por Ayrson Heráclito na arte brasileira é um sopro de frescor e, ao mesmo tempo, um mergulho em águas profundas.
Neyde Lantyer, agosto de 2015.
Tive o prazer de estar presente à abertura do grande prêmio de fotografia contemporânea de Portugal, o Novo Banco Photo, no Museu Coleção Berardo, em Lisboa, ao qual concorre este ano o brasileiro Ayrson Heráclito. Originalmente destinado a artistas portugueses, o prêmio foi expandido aos demais países lusófonos a partir de 2011.
Alem de Heráclito, natural de Macaúbas-Bahia, concorrem Ângela Ferreira, de Maputo, Moçambique, e Edson Chagas, de Luanda, Angola. Ambos os artistas luso- africanos têm trajetórias destacadas em premiações e eventos seminais para as artes contemporâneas, a exemplo da Bienal de Veneza. Diversas entre si, suas obras se alinham esteticamente à fotografia artística contemporânea européia ao tempo que, em maior ou menor grau, se relacionam com o debate pós-colonialista, que trata da desconstrução da hegemonia cultural ocidental, debate esse que tem permeado a atmosfera político-filosófica nas ex-colônias portuguesas da África, em décadas recentes.
A presença de Ayrson Heráclito com a obra “A Reunião das Margens Atlânticas” é uma oportunidade para refletirmos sobre o lugar da arte brasileira em relação à produção das ex-colônias portuguesas. Para isso, é necessário nos atentarmos para o próprio conceito de ‘lusofonia’, que ultrapassa a unidade utópica da língua, compreendendo que assim como lusófonos são aqueles que falam o idioma luso – ou seja, todos os países que foram colonizados por Portugal – lusófonas são tambem, por efeito, as marcas da colonização, sua memória e as identidades culturais que se formaram no seu esteio, tanto quanto suas feridas, com todas as consequências extensivas à várias gerações. Tais questões estão profundamente e de todas as formas, relacionadas à África e aos nossos vínculos históricos com aquele continente.
O REENCONTRO DAS MARGENS
A “Reunião das Margens Atlânticas”, como o título antecipa, é um esforço artístico por promover um ‘reencontro’ simbólico das duas bordas do oceano que guardam, em seus lados opostos – e no caminho que as separa (e une) – uma história viva. As oito fotografias e os dois vídeos exibem uma performance que executa um ritual de “sacudimento”, como os que são realizados nos candomblés da Bahia, que consiste de tomar nas mãos ramos de certas folhas e batê-los nos cantos da casa para afugentar os maus espíritos e as energias estagnadas.
Não por acaso, o projeto expositivo de Ayrson Heráclito se apresenta na forma de um espelho, confrontando imagens realizadas em Salvador-Bahia, e na ilha de Goreé, no Senegal. As fotografias coloridas, primorosamente fotometradas para produzir um chiaroscuro em tons quentes, ampliadas em escala humana, junto aos vídeos de dimensões e tonalidades similares, encaram uns aos outros no espaço de uma sala escura, de um lado, Brasil e do outro, África. Luz-e-sombra, cores, formas, o movimento repetitivo dos performers, o som que produzem nos vídeos e a organicidade do conjunto provocam um impacto emocional imediato, em contraste com os trabalhos expostos nas salas anteriores, que demandam mais tempo para serem assimilados. Imbuídos de uma estética mais “racional”, com reminiscências da Escola de Dusseldorf, a moçambicana Ângela Ferreira e o angolano Edson Chagas tambem apresentam obras de forte conteúdo dramático, seja diretamente relacionadas aos tempos coloniais (Ferreira), seja por meio de uma narrativa minimalista sobre as contradições das sociedades de consumo globalizadas (Chagas).
ÁRVORES SAGRADAS, EDIFÍCIOS POLÍTICOS
Para alem de eficiente estratégia estética, ao confrontar a arquitetura e a natureza da partida e da chegada dos povos traficados da África ao Brasil para nunca mais retornar, o ‘espelho de Heráclito’ parece pretender que, colocados face a face, os opostos se entrelacem. Primordialmente, “A Reunião das Margens Atlânticas” exuma um drama latente, cuja força emerge do vigor das imagens e do ritmo constante da performance que induz o espectador à imersão no ritual no qual três homens, usando vestes brancas – entre eles o próprio artista, atuando como um sacerdote, a liderar o “exorcismo” – buscam, com a “limpeza” das edificações, uma saída para a história. É então que o espelho se revela como a base conceitual da obra, a ‘religar’ duas pontas de uma mesma narrativa deixando ver, no seu centro, um abismo.
Os signos evocados são familiares: homens negros contemplando o mar remetem, por si só, ao vínculo histórico, emocional e indomável com um passado que, mesmo velado, nos diz respeito: o mar como distanciamento talvez seja a mais poderosa das metáforas para a escravidão africana no continente americano. Por sua vez, a presença das árvores simbolizando eternidade lembra o anseio por identidade e pertencimento. Porem, a arquitetura é particularmente comovente, dado o poder evocativo das duas edificações coloniais ligadas para sempre pelo fio invisível de suas funções complementares. Espelhadas na arte assim como na história, a Casa da Torre e a Maison des Eclaves guardam em suas efígies a força vil de seus desígnios. Como bem nos lembra Ângela Ferreira na sala ao lado, “os edifícios podem ser lidos como textos políticos”. É nessa perspectiva que os volumes imponentes, luz-assombreados pelo sol baixo e dourado, são reduzidos ao seu conteúdo simbólico: a desumanização de milhões de seres humanos, circunscritos aos seus corpos, explorados como máquinas de trabalho em uma terra distante.
MÚLTIPLOS MUNDOS
Ayrson Heráclito é um artista em movimento cuja presença vem se multiplicando em aparições nos mais proeminentes eventos de arte contemporânea, dentro e fora do país. Trabalhando com materiais tão inesperados quanto emblemáticos da herança africana no Brasil, entre eles azeite de dendê, carne seca, verduras, raízes e folhas, o artista se lança no desafio de fazer a revisão representacional de toda uma tradição artística. Suas instalações, performances e objetos de inspiração tropicalista conjugam a iconografia sagrada afro-brasileira com reminiscências neoconcretistas, perceptíveis tanto nas estruturas quanto nas subjetividades. Sua obra é a epifania de um artista em processo de reconciliação com um legado cultural que foi recalcado – no sentido freudiano do termo – pelo conservadorismo e o racismo estruturais da nossa sociedade.
Arte é processo, é experiência imaginativa que nasce do diálogo, não monólogo. Um dos países mais negros do mundo, seguimos negando a basal contribuição africana na formação da nossa cultura, por se tratar de idéia conflitante com a imagem que o Brasil insiste em manter sobre si mesmo. Consequentemente, a arte afro-brasileira se desenvolveu como prática de resistência, idealizando uma herança cultural pouco conhecida, com escassa ou nenhuma base institucional, pouco se aventurando pelo contemporâneo. Entretanto, o espelho de Heráclito abre uma fenda política no seio dessa tradição. Ao confrontar África e Bahia evocando as feridas da escravidão, ele dialoga com a nova geração de artistas provenientes das periferias do mundo, especialmente da África, à exemplo de seus concorrentes ao prêmio Novo Banco Photo 2015, uma geração que tem ocupado os principais palcos da arte com reflexões sobre identidade, injustiça social e história, forjadas em trocas culturais intensas entre os múltiplos mundos contemporâneos, trocas essas das quais tambem nós precisamos fazer parte. Não há remédio para curar a história. Porem, o lugar reivindicado por Ayrson Heráclito na arte brasileira é um sopro de frescor e, ao mesmo tempo, um mergulho em águas profundas.
Neyde Lantyer, agosto de 2015.
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AYRSON HERÁCLITO é artista visual e curador, doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP e professor do curso de Artes Visuais do Centro de Artes Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Suas obras transitam pela instalação, performance, fotografia e audiovisual e lidam com freqüência com elementos da cultura afro-brasileira. Seus trabalhos ttrazem dendê, a vida no Brasil-Colônia, charque, açúcar, peixe, esperma e sangue, corpo, dor, arrebatamentos, apartheids e sonhos de liberdade.
NEYDE LANTYER é artista visual e pesquisadora independente em fotografia, editora de imagens, restauradora de negativos vintage, ensina fotografia contemporânea, criou a plataforma online Fotografia & Cultura e o programa Conversas sobre Fotografia (Amsterdã-Holanda). Atua como
curadora, conceitualizadora de projetos e gestora em organizações e empreendimentos culturais. Seu trabalho investiga a fotografia em relacionamento com outras mídias e técnicas artísticas, contemplando a ampla gama de campos possíveis à imagem fotográfica como arte, memória e símbolo da cultura de massas.