O CRIME

Crônica, 2011


© Neyde Lantyer, 2006. Fotografia.
Eu era muito pequena quando estourou a notícia do assassinato. Fui com meu pai ao funeral. Creio que tinha cinco ou seis anos pela sensação de asfixia ao ver a multidão por um ângulo baixo, com meu pai me segurando pela mão. Eram roupas pretas, pernas de calças, saias e talvez bengalas e guarda-chuvas em movimento. O nome dela era Meire, acho que tinha 18 anos. Era morena e doce. Lembrava de tê-la visto na igreja montando o presépio, no último Natal. Montar o presépio era uma atividade almejada. Eu sempre sonhei em arrumar aqueles boizinhos e carneirinhos e em colocar o Menino Jesus no bercinho da manjedoura, mas nunca tive a oportunidade de fazê-lo. Acho que a visão dela arrumando as figuras na palha me encantou, daí o desejo. Lembro do jornal com a notícia passando das mãos de meu pai para as de minha mãe. Era uma longa reportagem. Ela estudava em Salvador e morava num pensionato religioso. Assistia televisão na sala, de costas para a porta aberta para a rua, quando o homem se aproximou pedindo esmolas e a freira foi até a cozinha para buscar um pão. Com um pequeno punhal, ele avançou por traz, acertou um furo único no seu coração e fugiu. Ela ainda se levantou e tentou correr de encontro à freira, que voltava com a esmola. Suas palavras antes de cair morta no corredor: “Irmã, o homem me furou.” Especulou-se que o crime misterioso fora uma encomenda. Nunca se soube de quem. Consta que sua autópsia causou comoção pela beleza do seu corpo nu, por pouco intacto. O crime jamais foi desvendando.

PS. Este é um texto sobre um fato real, escrito a partir de memórias imprecisas. Recentemente, verificando as datas, constatei que meu pai já tinha morrido quando o crime aconteceu e que eu já era um pouco mais velha, tinha na verdade 10 anos. As cenas do funeral que descrevo aqui são certamente as memórias de algum outro funeral, mescladas ao caso em questão.