(História do Cel. Francisco Lantyer)
2021

Seu pai fora tenente-coronel do império num tempo remoto, dono uma das primeiras patentes da região, quando a vila ainda não havia sido fundada. Liderança de alcance local num recanto remoto, possuía criação de gado e terras - que no sertão se revelaram de pouca valia - adquiridas de Dona Isabel Maria Guedes de Brito, herdeira da Casa da Ponte, e dos primeiros sesmeiros dos sertões de dentro. O Coronel João Antônio possuía um comércio rudimentar, que abastecia e era abastecido pelos tropeiros que, de tempos em tempos, penetravam a região. E tinha escravos. Nos relatos que sobreviveram, consta ao menos uma senhora chamada Catarina.
Quando o jovem coronel adquiriu sua carta-patente e a espada, sob o desembolso de uma boa quantia inicial e um estipêndio anual vitalício à Guarda Nacional, a escravidão fora recém-abolida (1888), a república tinha sido proclamada (1889) e a modernidade se avizinhava, anunciada pela chegada da estrada de ferro inglesa (1886) e de outras novidades antes insuspeitáveis - entre elas, a fotografia. Dois de seus irmãos também compraram a patente de coronel, tornando-se nomes proeminentes nas cidades de Caetité e Guanambi, onde foram intendentes, expandindo os rastros do patriarca para outras localidades sertanejas.
A família cultivava um entusiasmo pelo progresso e uma “erudição” rudimentar (se é que é possível falar assim), fruto de esforços autodidatas, naqueles confins sem escolas. Entre seus membros, havia professores, padres, juizes e doutores, alem de um poeta - vestígios de certa ascendência Portuguesa abastada, que possibilitou a alguns mais antigos, estudarem em Coimbra.
O jovem coronel permaneceu ali mesmo, na Vila Bela das Queimadas, a mesma que, uma década depois, Euclides da Cunha acusaria de medonha e miserável, com suas casas escassas e pobres comércios, dentre os quais, o seu destacava-se como principal. Negociava víveres que, se nos tempos de seu pai, viajavam em lombo de burro, agora chegavam de trem, embarcados não somente em Vila Nova da Rainha, Cachoeira e Caetité como também na vibrante e cosmopolita capital, a cidade da Bahia de São Salvador. Francisco apostou nos ventos do progresso soprando sobre aquelas terras esquecidas.
Idealista, entusiasta das novidades tecnológicas, da Maria-Fumaça, da lâmpada incandescente e de tudo aquilo que lhe chegava às mãos pelos livros, periódicos e almanaques, deixou-se fascinar pela França e com ela, pelos ideais da Revolução Francesa. Entre a predileção por compotas de figo e as barricas de vinho do Porto que fazia chegar da capital, misturava sentimentos libertários com ideais do bem-viver, em sua paixão pelo país que nunca chegou a visitar.
Encantava-se pelo que via nas viagens à Bahia, onde circulavam muitos estrangeiros, e o elegante Teatro São João apresentava recitais de canto, música e poesia, revezando artistas recém-chegados do Rio de Janeiro, de Lisboa e de Paris. Na capital, gostava de se fazer fotografar em ternos elegantes, sempre na mesma Photo Gonçalves, situada na vibrante Rua Chile, onde havia abundavam os estúdios de fotografia da época, na cidade do Salvador.
Francisco aprendeu a ler em francês por seus próprios esforços e um dia, entre os livros que encomendava na Bahia, lhe chegou às mãos um romance novo, que contava a história crua da opressão sofrida pelos trabalhadores das mina de carvão francesas, cuja situação insustentável, levou-os a entrarem em greve, sob a liderança de um jovem rebelde, com ideias socialistas, de nome Etienne Lantier. O livro era Germinal (1885), de Emile Zola. Nesse ponto, a história de Francisco é atravessada pelo livro. Alguns acreditam que ele resolveu, então, adotar o sobrenome do protagonista, pondo em cheque a lenda dos três franceses que se estabeleceram no sertão de dentro, vindos dos lados da foz do Itapicuru, entre eles, o Lantier original.
Não muito depois, a vila seria avizinhada pelo drama da guerra. Desembarcados na estação ferroviária da Vila Bela das Queimadas, os milhares de soldados das últimas expedições enviadas para combater Canudos, invadiram suas ruas sem calçamento, assaltaram pequenos negócios, saquearam fazendas, assediaram as mulheres e ameaçaram as famílias, deixando um rastro de destruição em seus logradouros e estradas. Francisco fez o possível para atender às incessantes solicitações de dinheiro, comida e alojamento para tantos homens, cujas necessidades, o governo jamais supriu. Mas ao contrário de que possa parecer, a gastança com as expedicões era enorme. Consta que armas, munições e equipamentos sofisticados chegavam em Queimadas e ficavam desprezados pelas estradas, ainda embalados, sem que nenhum encarregado ou liderança organizasse sua recepção e distruibuição.
Ocorre que Francisco ajudava também aos pedintes que, nos últimos tempos se dirigiam aos grupos para Canudos (ou Belo Monte) e, essa informação foi ofertada aos militares que, ao perceberam que o coronel não se posicionava com veemência sanguinária a favor daquela guerra injusta, acusaram-no de apoiar os sertanejos e sua revolta. Sua fotografia estampou os jornais do Rio de Janeiro: “Jovem coronel apoia Antônio Conselheiro”, manchete que foi enfaticamente combatida por seus irmãos e outras personalidades políticas, cientes do seu caráter conciliador.
Finda a guerra, casado com Joaquina Borges, Francisco sonhou em construir um casarão em estilo francês para abrigar sua crescente família. Realizou o sonho em 1900, quando o fantasma de Canudos já se desvanecia, submerso no massacre de mais de vinte e cinco mil almas, apenas uma centena de quilômetros dali. Em 1907, reviveu o trauma, passando noites sem dormir com a leitura de “Os Sertões” que, recem lançado pelo jornalista-engenheiro Euclydes da Cunha, chocava e comovia o país. Em 1908, Joaquina falece aos 45 anos, ao dar a luz o oitavo filho do casal, no mesmo ano, morre tambem o velho coronel João Antônio, seu pai. Em 1911, a cheia do Itapicuru destruiu a Vila Bela, deixando apenas sua sonhada casa de pé. O coronel se desiludia. Morreu 5 anos mais tarde, logo depois de entregar o cargo de intendente, com um longo relatório escrito do próprio punho, onde prestava contas de um governo de finanças rigorosamente comprovadas, e da construção da cadeia pública e da sede da prefeitura. O longo documento escrito tambem dava pistas de sua melancolia. O jovem coronel tinha envelhecido. Foi velado na frente de sua mansão, com um grande cortejo de homens de terno e gravata. Era o ano de 1916 e ele tinha apenas 56 anos de idade.
Neyde Lantyer, Jul/2021
Quando o jovem coronel adquiriu sua carta-patente e a espada, sob o desembolso de uma boa quantia inicial e um estipêndio anual vitalício à Guarda Nacional, a escravidão fora recém-abolida (1888), a república tinha sido proclamada (1889) e a modernidade se avizinhava, anunciada pela chegada da estrada de ferro inglesa (1886) e de outras novidades antes insuspeitáveis - entre elas, a fotografia. Dois de seus irmãos também compraram a patente de coronel, tornando-se nomes proeminentes nas cidades de Caetité e Guanambi, onde foram intendentes, expandindo os rastros do patriarca para outras localidades sertanejas.
A família cultivava um entusiasmo pelo progresso e uma “erudição” rudimentar (se é que é possível falar assim), fruto de esforços autodidatas, naqueles confins sem escolas. Entre seus membros, havia professores, padres, juizes e doutores, alem de um poeta - vestígios de certa ascendência Portuguesa abastada, que possibilitou a alguns mais antigos, estudarem em Coimbra.
O jovem coronel permaneceu ali mesmo, na Vila Bela das Queimadas, a mesma que, uma década depois, Euclides da Cunha acusaria de medonha e miserável, com suas casas escassas e pobres comércios, dentre os quais, o seu destacava-se como principal. Negociava víveres que, se nos tempos de seu pai, viajavam em lombo de burro, agora chegavam de trem, embarcados não somente em Vila Nova da Rainha, Cachoeira e Caetité como também na vibrante e cosmopolita capital, a cidade da Bahia de São Salvador. Francisco apostou nos ventos do progresso soprando sobre aquelas terras esquecidas.
Idealista, entusiasta das novidades tecnológicas, da Maria-Fumaça, da lâmpada incandescente e de tudo aquilo que lhe chegava às mãos pelos livros, periódicos e almanaques, deixou-se fascinar pela França e com ela, pelos ideais da Revolução Francesa. Entre a predileção por compotas de figo e as barricas de vinho do Porto que fazia chegar da capital, misturava sentimentos libertários com ideais do bem-viver, em sua paixão pelo país que nunca chegou a visitar.
Encantava-se pelo que via nas viagens à Bahia, onde circulavam muitos estrangeiros, e o elegante Teatro São João apresentava recitais de canto, música e poesia, revezando artistas recém-chegados do Rio de Janeiro, de Lisboa e de Paris. Na capital, gostava de se fazer fotografar em ternos elegantes, sempre na mesma Photo Gonçalves, situada na vibrante Rua Chile, onde havia abundavam os estúdios de fotografia da época, na cidade do Salvador.
Francisco aprendeu a ler em francês por seus próprios esforços e um dia, entre os livros que encomendava na Bahia, lhe chegou às mãos um romance novo, que contava a história crua da opressão sofrida pelos trabalhadores das mina de carvão francesas, cuja situação insustentável, levou-os a entrarem em greve, sob a liderança de um jovem rebelde, com ideias socialistas, de nome Etienne Lantier. O livro era Germinal (1885), de Emile Zola. Nesse ponto, a história de Francisco é atravessada pelo livro. Alguns acreditam que ele resolveu, então, adotar o sobrenome do protagonista, pondo em cheque a lenda dos três franceses que se estabeleceram no sertão de dentro, vindos dos lados da foz do Itapicuru, entre eles, o Lantier original.
Não muito depois, a vila seria avizinhada pelo drama da guerra. Desembarcados na estação ferroviária da Vila Bela das Queimadas, os milhares de soldados das últimas expedições enviadas para combater Canudos, invadiram suas ruas sem calçamento, assaltaram pequenos negócios, saquearam fazendas, assediaram as mulheres e ameaçaram as famílias, deixando um rastro de destruição em seus logradouros e estradas. Francisco fez o possível para atender às incessantes solicitações de dinheiro, comida e alojamento para tantos homens, cujas necessidades, o governo jamais supriu. Mas ao contrário de que possa parecer, a gastança com as expedicões era enorme. Consta que armas, munições e equipamentos sofisticados chegavam em Queimadas e ficavam desprezados pelas estradas, ainda embalados, sem que nenhum encarregado ou liderança organizasse sua recepção e distruibuição.
Ocorre que Francisco ajudava também aos pedintes que, nos últimos tempos se dirigiam aos grupos para Canudos (ou Belo Monte) e, essa informação foi ofertada aos militares que, ao perceberam que o coronel não se posicionava com veemência sanguinária a favor daquela guerra injusta, acusaram-no de apoiar os sertanejos e sua revolta. Sua fotografia estampou os jornais do Rio de Janeiro: “Jovem coronel apoia Antônio Conselheiro”, manchete que foi enfaticamente combatida por seus irmãos e outras personalidades políticas, cientes do seu caráter conciliador.
Finda a guerra, casado com Joaquina Borges, Francisco sonhou em construir um casarão em estilo francês para abrigar sua crescente família. Realizou o sonho em 1900, quando o fantasma de Canudos já se desvanecia, submerso no massacre de mais de vinte e cinco mil almas, apenas uma centena de quilômetros dali. Em 1907, reviveu o trauma, passando noites sem dormir com a leitura de “Os Sertões” que, recem lançado pelo jornalista-engenheiro Euclydes da Cunha, chocava e comovia o país. Em 1908, Joaquina falece aos 45 anos, ao dar a luz o oitavo filho do casal, no mesmo ano, morre tambem o velho coronel João Antônio, seu pai. Em 1911, a cheia do Itapicuru destruiu a Vila Bela, deixando apenas sua sonhada casa de pé. O coronel se desiludia. Morreu 5 anos mais tarde, logo depois de entregar o cargo de intendente, com um longo relatório escrito do próprio punho, onde prestava contas de um governo de finanças rigorosamente comprovadas, e da construção da cadeia pública e da sede da prefeitura. O longo documento escrito tambem dava pistas de sua melancolia. O jovem coronel tinha envelhecido. Foi velado na frente de sua mansão, com um grande cortejo de homens de terno e gravata. Era o ano de 1916 e ele tinha apenas 56 anos de idade.
Neyde Lantyer, Jul/2021