IMAGENS DESCARTADAS




IMAGENS DESCARTADAS


Descoberta na primeira metade do século XIX, a fotografia por muito tempo ficou marcada pelo estigma de médium secundário, desprezada por críticos, instituições artísticas e colecionadores. A mesma fotografia atingiu seu triunfo neste início do século XXI quando, superando todas as expectativas, estabelece-se como gênero predominante entre as artes contemporâneas.

O que mudou então? Qual fator ou fenômeno foi capaz de elevar aquela que era o “patinho feio” dentre todas as artes, ao ponto de chegar à era digital com o status tão turbinado? A verdade é que as décadas recentes viram surgir um interesse recorde pela fotografia, já não mais apenas pela classe média com suas câmeras Kodak mas tambem por artistas, críticos e instituições. Paradoxalmente, as razões qua q levaram ao topo são as mesmas pelas quais era desprezada: seu caráter mecânico, sua natureza híbrida e sua infinita reprodutibilidade. A ascensão da fotografia ao caráter de “high art” ocorre no esteio da arte conceitual e da reviravolta na produçnao artística a partir dos anos 1960, trazendo à tona reflexões qualificadas sobre sua especificidade como médium e a urgência da sua conservação como objeto.

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Mas é a fotografia vernacular, aquela que proliferou na clásse média, a que mais interessa à esta reflexão. O que talvez não se imagine é que, ainda na era analógica - que de repente já faz parte do passado, ainda que recente mas cada vez mais remoto - um incalculável volume de fotografias foi produzido no planeta em quantidade de tal forma gigantesca e onipresente que pode-se afirmar que fotografava-se como se respirava. É um exagero, claro, mas é verdade que se chegou a uma produção diária absurda de fotografias impressas na era opré-digital - para a alegria dos capitalistas mas tambem da nossa memória e dos nossos afetos. Por isso mesmo o descarte sempre foi parte indissociável do ato de fotografar.

Hoje, ao falarmos de descarte do objeto fotografia, estamos contemplando o passado, quando a era digital continua nos confrontando com um descarte infinitamente mais profundo e assombroso, virtual, intocável, das imagens que sequer chegaram a existir. O virtual levou à uma espeçie de compulsão do fotografar para confirmar não os eventos banais que justificam a prática, mas a existência em si, a fragilidade do ego, o medo da morte. Numa época em que, paradoxalmente, a fotografia é manipulável e serve tambem para manipular o resultado desejado e, consequentemente, o status quo, as imagens são feitas e impiedosamente descartadas nos lixões virtuais.

Qual o objetivo final do registro compulsivo que realizamos da nossa própria existência?


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Se refletirmos sobre a obsessão com que fotografamos a nossa vida, ainda estaremos contemplando as imagens envelhecidas no papel. Ao colecionarmos nossas imagens na internet, já estamos irremediavelmente distanciados de como costumávamos carregar, até pouco tempo atrás, as  3×4 dos nossos entes queridos nas nossas carteiras.

O objeto fotografia chegou ao fim para as famílias, para a sociedade e a cultura, nos restando apenas a nostalgia do colecionador a  redescobir, admirar, cuidar e até mesmo adorar aquilo que hoje já é passado. A obsessão da coleção de registros individuais que encontrava sua falência com a morte, qdo as coisas acumuladas como objetos de afeto são abandonadas, perdidas ou descartadas, hoje é algo pitoresco, exótico até. Outro descarte tão melancólico quanto tomou seu lugar com a evasiva do trivial.