Crônica, 2021
Eu era muito pequena, tinha talvez 6 anos. E havia o rio, onde eu não deveria ir. Minha mãe proibia. Temia. Não à toa. Sobreviveu de um quase afogamento, aos 2 anos de idade, naquele mesmo local, onde se passou esta história. Mas eu ia sempre. Porque visitava diariamente a casa de minha avó, de sedutora proximidade. E podia nadar sem que minha mãe tivesse como impedir. As águas eram quase geladas. Compensávamos com o calor do ar. Tínhamos enorme prazer com o quente-frio água X sol-vibrante-da-tarde. Ficávamos mto tempo dentro d’água e quando saíamos, tínhamos os dedos branco-arroxeados e enrugados. Tremíamos, mas logo nos refazíamos no ar quente, e então entravamos outra vez. Pulávamos de algumas pedras nuns poços, uns fundos, profundos, onde você tinha que saber nadar para se manter na superfície. Eu me virava. O mais perigoso eram mesmo as correntezas. As águas frias, típicas de rio, eram também escuras, mesmo quando não barrentas pelas cheias. Amarronzadas, com tons de amarelo onde era raso e o sol penetrava, tocando a areia do leito. Os meninos mergulhavam de olhos abertos para procurar peixinhos, pitus, pequenos caramujos, pedrinhas, galhos, ou para caçar uns aos outros em suas intermináveis brincadeiras de meninos. Eu nunca tinha mergulhado de olhos abertos, temia o ardor da água nos olhos e mais ainda a possibilidade de olhar para o escuro debaixo da superfície. Até que um dia, a menina que morava perto de minha avó me instigou a abrir os olhos, ela queria me mostrar algo que estava dentro de sua mão, mas só se eu mergulhasse com ela e olhasse lá embaixo. Eu, que sempre fui medrosa para certas coisas misteriosas mas muito corajosa para outras, depois de algumas negativas, aceitei o desafio. Tapei o nariz e pulei das rochas gordas naqueles fundos. A menina me esperava dentro d’água. Pulei pesado, em pé, meu corpo afundando com o meu peso e o impulso, desci muito, e sem que tivesse tocado o solo, comecei a subir. Me forçando uma frágil coragem, abri os olhos num repente. Eu estava envolta num mundo amarelo-esverdeado difuso todo novo, as pernas da menina muito brancas, alongadas e disformes serpenteavam à um metro de mim. Havia plantas distorcidas, em movimento, e peixinhos também alongados, nadando em cardumes. Fiquei girando em torno de mim mesma, naquele amarelo escuro que me envolvia e fazia tudo o mais balançar com ritmo e a sensação de um abraço pleno, um abraço mineral que era um abraço macio e total q só o rio dava. Era minha primeira vez de fato submersa. Deve ter demorado apenas alguns segundos mas comecei a me ver apartada de tudo, como se a promessa de um mundo totalmente novo tivesse pousado na minha percepção. Nada era parado, tudo se movia, tudo parecia vibrando à um distância mágica que ao mesmo tempo me engolia inteira e o que eu via era um mundo mágico obscuro e fluido, claro-escuro e tenro. Terno. Acima o sol havia se transformado num facho de luz. Mto alva e brilhante. Qdo finalmente emergi e olhei a pedra que a menina me mostrava na mão aberta, ela tinha um brilho intenso e diferente. Era branca? Eu a vi iluminada e intensa, a ponto de não poder olha-la por mais de uma fração de segundo pois meus olhos se contraiam, não davam conta. A menina queria continuar brincando mas eu fiquei calada e introspectiva. O vislumbre de algo inteiramente novo me chamava para alem dela e do rio, e da cidadezinha e de mim. Acho que foi ali que eu senti pela primeira vez o desejo de mergulhar em algo profundo e poético, como um quadro, um filme, uma vida de poemas, ou um planeta novo muito novo. E distante. Eu fui andando pelo caminho que dava no Chalé, sem olhar para o chamado da menina, que ficou sozinha, parada, sobre a pedra. Aquela foi a primeira vez que eu soube que havia uma coisa para mim, alem, para alem de mim, que depois muito depois chamei de arte.