O OLHAR ESTRANGEIRO
Excerto de texto sobre Fotografia baiana
p/ Casa da Photographia / Marcelo Reis
Dec, 2023













Para uma reflexão crítica sobre a fotografia baiana, é urgente nos atentarmos ao olhar estrangeiro. Fundante do retrato da Bahia que hoje conhecemos e reconhecemos, e ao qual sempre recorremos para uma representação de nós mesmas, tal olhar se fez presente ainda muito antes da icônica contribuição de Pierre Verger. Desde a segunda metade do século XIX, quando dos primórdios do medium fotográfico, inúmeros europeus montaram seus estudios em Salvador, passando a oferecer serviços fotográficos à eleite local, para quem produziram os primeiros retratos de família. Nas horas vagas, esses forasteiros praticavam seu esporte preferido: o voyerismo etnográfico obstinado, registrando a população e a paisagem da ex-capital - então uma cidade profundamente colonial e escravista, ainda que o país já fosse formalmente independente e vivesse o período pré-abolicionista - produzindo as imagens que iriam formar a base de nossos arquivos históricos. Mas é Verger, sem sombra de dúvidas, o grande responsável pela imagética definitiva da Bahia, o invólucro da própria memória cultural de um lugar que pulsava e ansiava por uma síntese, recebendo de bom grado a que o fotógrafo-etnógrafo francês lhe ofertou: identidade, narrativa, beleza, constraste, sensualidade e mistério, sob uma fotometragem perfeita. Ainda assim, de todas as formas, um olhar essencialmente europeu, certamente masculino e profundamente mergulhado na colonialidade.

Desde que comecei a fotografar, nos anos 90, busquei, atenta e teimosamente, uma possibilidade de inversão do jogo do olhar estrangeiro, ou se preferir, do jogo do voyer. Ansiava por uma brecha, um desvio do cliché, uma possibilidade de subversão. Ainda que de forma latente, buscava uma abordagem que penetrasse aspectos da nossa complexidade cultural, em suas camadas profundas. Uma abordagem política, sociológica e engajada, que permitisse devolver tal complexidade em imagens. O que desejava, depois entendi, era um olhar feminino. Não houve, praticamente, qualquer mulher na gênese da nossa fotografia. No final dos anos 30, a antropóloga americana Ruth Landes realizou um ensaio que penso se constituir nas primeiras fotografias “femininas” produzidas na Bahia sobre a Bahia. Ainda que estrangeiras e etnográficas, as imagens de Landes revelam o fato novo de uma presença de mulher por trás da câmara, sendo, portanto, já de saída relevantes. Mas, especialmente, por uma sensibilidade antropológica precocemente feminista revelada por esse olhar de mulher que, ao se virar para o matriarcado dos terreiros de candomblé, distinguindo a existência de um poder exercido de forma inédita e surpreendente, por mulheres, algo que ela jamais havia presenciado em suas pesquisas, atenta então por fotografar tal descoberta. Em seguida, Landes escreveu “Cidade das Mulheres” (1947), o  livro com o qual, abrindo um novo debate que cruzava raça e gênero, encerrou sua viagem/expedição à Bahia.

Se escrutinarmos a existência de mulheres locais praticando a fotografia à época da visita de Landes, encontraremos, solitária, a baiana de origem espanhola Araçy Esteves que, ao retratar a nova classe média e aspectos inéditos da cidade do Salvador, que ia se modernizando e se transformando, com seus cinemas e automóveis, inconscientemente, ensaiava um novo olhar feminino. Em paralelo ao tempo em que Esteves concentrava suas lentes nas cenas internas e externas de uma ascendente cultura soteropolitana, Verger - conscientemente - fotografava etnograficamente os trabalhadores suados do caís do porto, com seus músculos fortes, no trabalho duro, assim como as muitas manifestações culturais-religiosas da Bahia. Somente a partir dos anos 60-70, época em que a segunda onda feminista abriria espaço para o questionamento sobre a presença das mulheres nas artes, surgiria uma geração de fotógrafas baianas. De lá para cá, muitas mulheres pegaram a câmera como instrumento de ação, de trabalho e de leitura do mundo, e da Bahia, em específico. Como se deu e se dá, desde então, essa construção do olhar e do corpo de trabalho das mulheres fotógrafas baianas, é tema para a pesquisa. A pergunta é: afinal, nos afastamos do olhar estrangeiro/masculino e construimos nossa própria linguagem ou continuamos contribuimos para com o voyerismo patriarcal na leitura do nosso próprio mundo?

LANTYER, Neyde, Janeiro/2024. O OLHAR FEMININO (excerto de ensaio). Neyde Lantyer © 2024 - Todos os direitos reservados.

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