AS MENINAS, A GUERRA E A FOTOGRAFIA
Artigo
2014



A tarefa da arte é desfazer o trabalho constante realizado desde há muito pela nossa vaidade, nossas paixões, nosso espírito da imitação, nossa inteligência abstrata, nossos hábitos, nos levando a viajar para trás, na direção do lugar de onde viemos até as profundezas, onde o que realmente existiu vive desconhecido, dentro de nós. _ Marcel Proust (tradução livre)




Na semana passada, um primo querido me enviou uma fotografia do álbum de sua mãe, datada de 1945. A cópia, feita com um celular, é precária, com problemas de foco e definição como era de se esperar, mas assim que a vi, percebi que estava diante de uma preciosidade sentimental, de comovente qualidade estética. Na foto, cinco meninas, entre elas, minha mãe. Não, não se trata de uma raridade por escassez. Minha mãe, suas irmãs e primas tiveram a sorte de ter muitas fotografias de sua juventude, especialmente de um período posterior ao desta imagem, durante a década de 1950. Por se tratar da vida em uma cidadezinha nos confins do sertão, a bela coleção de fotografias que documenta a juventude de minha mãe é muito mais rica do que o que se poderia supor. Hoje, a apenas 320km de distância de Salvador de carro, a pequena Queimadas daquele tempo, ficava a mais de um dia de viagem à bordo do lendário trem-dormitório da Leste Brasileira. Mas isso, é claro, só pode ser inferido por desinformação, pois não fazemos ideia da penetração do médium nas regiões mais longínquas do país então – carecemos de pesquisa, infelizmente. A verdade é que a fotografia era sim parte da vida daquela época e lugar, e plenamente acessível à minha mãe e tias, lá mesmo no sertão, como nos demonstra esse achado de 1945. A singeleza com que as meninas se relacionam com o fato de estarem sendo fotografadas nos dá facilmente a conjecturar sobre o trivial do episódio. Notem que não posam com roupas de festa, como seria natural caso a situação fosse rara ou encomendada. Apesar de duas delas ostentarem acessórios de viés fashion, por assim dizer, a imagem é um instantâneo, uma típica foto produzida no seio da família, capturando um momento de simplicidade. Alem do que nos revela como imagem em si, o registro nos informa da presença do fotógrafo em um dia-a-dia surpreendentemente desprovido de formalidades.

As meninas se ajeitam na imagem como se, por um momento, tivessem parado de brincar para tirar a foto, na expectativa do instante seguinte em que, sem perder muito tempo, pudessem voltar para as suas brincadeiras. No centro da composição, a menina de chapéu de abas graciosamente largas, mão na cintura, braço cruzado formando um triangulo e o olhar desafiante à câmera. Ela é o ponto de equilíbrio da imagem. À frente, a menorzinha, de bolsa e casaquinho, tambem encara a câmera em muda expectativa, sua sombra escura se projetando marcada sobre o vestido branco logo atrás. Ambas, a de chapéu e a de bolsa, imprimem ao conjunto um ar de “figurino”, levemente elegante, de meninas da cidade (muito embora, bolsa e chapéu sejam de palha – detalhe que quase passa desapercebido). À esquerda, as duas maiores, a primeira vestindo preto (usava luto), traz uma nostálgica expressão de suspense no olhar de perfil. Sua figura dialoga com a pequena figura da frente, tambem vestida de escuro, mãos cruzadas em harmonia sob o abotoado do casaco, ao tempo em que a segunda menina, a vestida de branco que olha diretamente para a câmera e que acontece de ser minha mãe, confere à imagem uma irresistível e quase que insustentável doçura. Seu olhar é firme e sincero. Entre todas e mais especialmente entre as que nos encaram de frente, ela é a única que sorri (e esse detalhe toca profundamente meu coração). No entanto, o mais notável de todos os elementos que compõem esta fotografia é exatamente o que, à princípio, parece um defeito: a menina projetada à direita, posando em pé sobre quem sabe um banco ou uma pedra, segurando uma boneca. A tensão maior da foto se deve à ela e à sua posição no conjunto, deslocada, sua altura fugindo ao horizonte da imagem, seu quase movimento e seu olhar em algum ponto à distancia,  projetando-se para alem da moldura e quebrando os padrões tradicionais das imagens de grupos com uma composição inesperada e lindíssima. Tudo isso junto faz desta, uma fotografia radicalmente moderna. Quem terá sido o fotógrafo?

Um dado importante para compreender esta fotografia é o ano em que foi tirada. Não podemos esquecer que era 1945, final da Segunda Guerra Mundial e – as meninas por certo não sabiam – mas nada no mundo permaneceria igual a partir de então, nem mesmo a fotografia. Longe dali, em Paris, Robert Capa e Cartier-Bresson iriam criar a Agência Magnum, institucionalizando o fotojornalismo nascido na guerra, da maneira que o conhecemos hoje em dia, enquanto que, no mesmo momento e lugar, o americano Richard Avedon já dava passos largos na direção do movimento e da rua, subvertendo para sempre tudo que havia sido a fotografia de moda até então. Se refletirmos com cuidado, vamos compreender que a fotografia das meninas do Chalé já antevê tais revoluções.

Não é a toa que a Segunda Guerra Mundial está no nosso imaginário e que recorro à ela para falar de uma fotografia de família tirada no sertão da Bahia, em tudo e por tudo distante daquela guerra, mas apenas aparentemente. Na verdade, o conflito na Europa nos afetou mais do que imaginamos. Como é sabido, o Brasil ajudou os Aliados na batalha contra a Alemanha nazista fornecendo matérias-primas, especialmente borracha, patrulhando o Oceano Atlântico e enviando uma força expedicionária para lutar na Itália ocupada. Mas o lado menos conhecido dessa história é que a população civil brasileira tambem sentiu os efeitos da guerra, as famílias sofreram escassez e racionamento de alimentos e de combustível, sendo obrigadas a enfrentar longas filas para comprar pão – nossa economia era enormemente dependente da Europa naqueles tempos. A vida nas grandes cidades brasileiras havia se tornado um suplício.

Aconteceu então que meu avô, homem sensato e cauteloso que era, poucos anos depois de ter se mudado para a capital para que os filhos frequentassem o colégio (então, Queimadas tinha apenas o curso primário) percebeu que deveria retornar com a família para o sertão. A guerra longínqua havia tornado inviável a sua permanência em Salvador acompanhado de filhos, parentes e agregados. Assim as meninas voltaram para os jardins e quintais do casarão cor-de-rosa de janelas e portas azuis, cercado de varandas, conhecido como “o Chalé Lantyer”. Mas, justiça seja feita, o racionamento e a escassez que prosseguiram após o fim da guerra não impediram que minha mãe e tias tivessem suas fotografias constantemente tiradas.

A foto das meninas nos fala de tempo, de memória, de mortalidade, de alheamento e de deleite. Capturada no momento em que a Segunda Grande Guerra chegava ao fim contando dezenas de milhões de mortos, ela nos oferece uma possibilidade admirável de examinarmos de perto o mundo naquele contexto e por essa e por inúmeras outras razões, é uma imagem única e inigualável. Seu conteúdo e sentimento nos falam de tantas coisas banais ao tempo em que penetram tambem no mais subjetivo dos mundos, abrindo irremediavelmente os nossos ‘baús do tesouro”, compostos de mistérios inconscientes, vínculos afetivos e antigas lembranças. É possível afirmar que esta fotografia imperfeita, precariamente reproduzida e perdida no tempo reúne as qualidades apropriadas para que façamos uma reflexão sobre esse que é o mais moderno de todos os médiuns artísticos e seu infinito potencial como fonte de conhecimento, objeto estético e como revelação.

       



Créditos das imagens:
1 - Album de família, fam. Lantyer
2 - Pracinhas brasileiros embarcando para a Europa para lutar com os Aliados na Segunda Guerra Mundial



Neyde Lantyer, Outubro, 2013.