Artigo
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Porto, Portugal
2021
INTRODUÇÃO
Primordialmente acidente geográfico e por acidental, inesperado, surpreendente, espantoso, que se projeta bloqueando a linha do horizonte. Sem grandes intimidades com tal geografia, me conformo de que, a princípio, uma montanha é uma rocha alta e robusta, um volume denso, estacionário, íngreme, impenetrável, envolto numa sombra profunda e, de certa forma, viva. Uma presença. Gigantesca.
Minha montanha particular, esta que agora busco representar, aparece como uma simples (inocente) rocha íngreme mas é essencialmente obstáculo, obstáculo, obstáculo. Sistêmico, estrutural (numa só palavra: capitalismo). Um volume denso obstruindo o caminho - ou engasgado na garganta. A montanha está engasgada na garganta, ou melhor, ela invadiu o meu ser, forçando de volta para dentro tudo aquilo que deseja sair, se expressar. Obstruindo a essência. Minha montanha é uma repressão criativa, um impedimento contundente, pétreo (original?). Um recalque. Ela ocupa o lugar onde a pulsão criativa deveria explodir - e ela esmaga. Esmaga e castra. (A montanha é o próprio sistema excludente). Por isso é preciso ressignifica-la, doma-la, possui-la, fazer dela a própria criação. Então, a partir de um certo momento, a montanha começou a me instigar, a me desafiar a vencê-la. E parece que é assim mesmo que acontece, montanhistas relatam recorrentemente o fenômeno: a montanha chama, desafia, não lhes permite mais dormir. É preciso enfrentá-la.
SERMÃO DA MONTANHA (1)
Pelas alturas sinto fascínio e pavor. Nasci e cresci em uma região de campina e embora tenha percorrido lugares acidentados e subido tantos morros e falésias dos contornos jamais monótonos da paisagem do meu país, nunca tinha de fato sentido o impacto e a emoção do confronto com tais volumes gigantescos até viajar pela primeira vez à Suíça. Entretanto, algo marcante havia me acontecido aos 12 anos, quando acompanhei minha avó até a cidade vizinha para a celebração da Semana Santa.
Era um lugar árido e trágico, eternamente vinculado à Guerra de Canudos (2), o massacre perpetrado pelo Exercito Brasileiro contra a revolta que mobilizou a região no final do século XIX. Os planos de minha avó consistiam de subir um monte íngreme para cumprir a “Via Crucis”, o Monte Santo (embora desolado, o referido monte é, por acaso, um ícone do Cinema Novo (3), tendo sido a locação de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme dirigido por Glauber Rocha em 1964). Subimos até o topo, de onde havia uma igreja seca e humilde abarrotada de “ex-votos”, de onde se divisava a imensidão do vale (4). Aquela subida foi a coisa mais difícil que experimentei até então, na minha fácil jovem vida. Conclui que odiava montanhas e prometi a mim mesma que nunca mais escalaria uma.
“IK HEB BOVEN DE ALPEN GEVLOGEN” (5)
Viver na Europa do Norte implica voar muitas vezes sobre os Alpes e seus abstratos picos nevados, mas tive que ir mesmo à Suíça para estar, finalmente, na presença de montanhas verdadeiramente altas. Protuberâncias na paisagem com seus corpos volumosos, seu peso e suas sombras, como dinossauros adormecidos cujas respirações praticamente pulsavam dentro do chalé onde estava hospedada. Foi ali que experimentei a montanha como um evento estético massivo (e uma presença física literalmente sufocante). Mas até então, admito, não sabia o que era uma montanha, alem da ideia pueril de montanha que povoa o imaginário popular-ancestral, do tipo que ilustrava os calendários pendurados na parede da casa de minha avó. Não sei por que razão as montanhas suíças eram o tema favorito daquelas publicações distribuídas pelas empresas nos anos 60 e 70, no Brasil. Como nenhuma imagem é inocente, me pergunto agora com que intenção aquelas paisagens idealizadas eram recorrentemente - ano após ano - distribuídas à pessoas como minha avó.
E justamente porque imagens jamais são inocentes... foi assim que um dia apareceu na tv holandesa a imagem de uma rocha negra de granito ou material similar, um volume superlativo que se projetava para o alto, durante a fala de um velhinho, pequenino e frágil. Levei algum tempo para compreender que o homenzinho havia criado a rocha e instantaneamente me ocorreu, por alguma associação totalmente inconsciente, que aquele volume ele o havia tirado de dentro de si mesmo, arrancando-o de suas entranhas e materializando-o naquela escultura, cuja única função era livra-lo de carregar seu peso sufocante.
ACIDENTE E ENIGMA
A montanha é um enigma que segue desafiando não apenas a mim. São incontáveis os artistas que confrontaram-se com tal enigma. Sua presença em forma, peso, volume, seu potencial metafórico de obstáculo, desafio, sonho ou mistério, são recorrentes em praticamente todos os períodos artísticos, assim como na literatura, no cinema e na mitologia. Onde morariam os deuses, senão no topo da mais alta das montanhas? Para o alemão Thomas Mann(6), no seu livro - não por acaso super volumoso - “A Montanha Mágica", ela é um estado de alma, um sentimento suspenso, “mágico”, fora do tempo. Para outros, é obstinação e potência. Com a obra “Quando a fé move montanhas”, o artista belga Francis Alÿs(7) realizou um trabalho épico, ao remover o topo de uma montanha de seu local original, com a ajuda de 500 voluntários equipados com pás, numa cidadezinha do Peru. A “land-art” de caráter efêmero (já que o deslocamento de algumas polegadas sequer seria notado logo depois de realizado) foi um protesto contra a opressão naquele país da América do Sul.
A MONTANHA NO SÓTÃO
Pensada como instalação, a “montanha” que venho construindo no sótão de minha casa situa-se, no seu estágio atual, em algum lugar entre a escultura e a maquete. “Sem lugar fixo, excluída de qualquer ideia de representação temporal, realiza-se num “lugar de construção” não-permanente”(8). Iniciada quase ao mesmo tempo que o semestre letivo, foi montada com “tela de galinheiro” + madeira + tecido + cola + tinta. Contando abandonos e retornos, a peça ocupa solitária boa parte de um quarto, no meio da nossa vida cotidiana. Nosso gato a rodeia, intrigado por ela, brinca com pedaços de arame perdidos, penetra na sua estrutura, que se revela um abrigo hostil (pontas e arestas que não foram aparadas, permanecem afiadas). Ela está lá e em breve estará finalizada, registrarei sua existência, a ser demarcada por video e fotografias, depois a desmontarei. Terei me apropriado dela como um amontoado de ideias e de desejos agora estruturados e nela contidos, domando-a, imprimindo- lhe uma forma, ensaiando uma própria linguagem - uma vitória simbólica (sobre o sistema). No fim, é apenas a presença magica do objeto inútil e silencioso no meio do quarto.
Minha montanha estará vencida? Ou será que, como o cineasta japonês Akira Kurosawa (9) - e todos os montanhistas - passarei a acreditar que o melhor cenário é sempre a próxima montanha? (É possível que tenha me tornado uma amante de montanhas?)
REFERÊNCIAS
1 - Expressão bíblica, referente ao discurso de Jesus Cristo; obra de Cildo Meireles;
2 - (1896-1897) Revolta político-religiosa no sertão daBahia, massacrada pelo exército brasileiro;
3 - (1960s-1970s) Gênero de cinema vanguardista surgido na Bahia-Brasil com ênfase em igualdade e justiça social (não confundir com o “Novo Cinema” surgido em Portugal entre 1963-1974;
4 - Objeto votivo ofertado aos santos e divindades;
5 - "Eu voei sobre os Alpes” frase poética em holandês encontrada em um desenho de autoria desconhecida representando os picos dos Alpes vistos de cima;
6 - Mann, Thomas. A Montanha Mágica, 1924;
7 - Francis Alÿs, artista multimedia belga;
8 - Krauss, Rosalind “A escultura no campo expandido”, artigo. Citação não-literal.
9 - Akira Kurosawa (1936-1993), cineasta japonês.
FIGURAS
1 - Neyde Lantyer. A montanha da/o artista”. Mixed media, 2020;
2 - Monte Santo, sem créditos. Fonte: internet
3 - Neyde Lantyer. “If I had known about it”, Mixed media sobre fotografia;
4 - Francis Alys, “A fé remove montanhas”.
Primordialmente acidente geográfico e por acidental, inesperado, surpreendente, espantoso, que se projeta bloqueando a linha do horizonte. Sem grandes intimidades com tal geografia, me conformo de que, a princípio, uma montanha é uma rocha alta e robusta, um volume denso, estacionário, íngreme, impenetrável, envolto numa sombra profunda e, de certa forma, viva. Uma presença. Gigantesca.
Minha montanha particular, esta que agora busco representar, aparece como uma simples (inocente) rocha íngreme mas é essencialmente obstáculo, obstáculo, obstáculo. Sistêmico, estrutural (numa só palavra: capitalismo). Um volume denso obstruindo o caminho - ou engasgado na garganta. A montanha está engasgada na garganta, ou melhor, ela invadiu o meu ser, forçando de volta para dentro tudo aquilo que deseja sair, se expressar. Obstruindo a essência. Minha montanha é uma repressão criativa, um impedimento contundente, pétreo (original?). Um recalque. Ela ocupa o lugar onde a pulsão criativa deveria explodir - e ela esmaga. Esmaga e castra. (A montanha é o próprio sistema excludente). Por isso é preciso ressignifica-la, doma-la, possui-la, fazer dela a própria criação. Então, a partir de um certo momento, a montanha começou a me instigar, a me desafiar a vencê-la. E parece que é assim mesmo que acontece, montanhistas relatam recorrentemente o fenômeno: a montanha chama, desafia, não lhes permite mais dormir. É preciso enfrentá-la.
SERMÃO DA MONTANHA (1)
Pelas alturas sinto fascínio e pavor. Nasci e cresci em uma região de campina e embora tenha percorrido lugares acidentados e subido tantos morros e falésias dos contornos jamais monótonos da paisagem do meu país, nunca tinha de fato sentido o impacto e a emoção do confronto com tais volumes gigantescos até viajar pela primeira vez à Suíça. Entretanto, algo marcante havia me acontecido aos 12 anos, quando acompanhei minha avó até a cidade vizinha para a celebração da Semana Santa.
Era um lugar árido e trágico, eternamente vinculado à Guerra de Canudos (2), o massacre perpetrado pelo Exercito Brasileiro contra a revolta que mobilizou a região no final do século XIX. Os planos de minha avó consistiam de subir um monte íngreme para cumprir a “Via Crucis”, o Monte Santo (embora desolado, o referido monte é, por acaso, um ícone do Cinema Novo (3), tendo sido a locação de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme dirigido por Glauber Rocha em 1964). Subimos até o topo, de onde havia uma igreja seca e humilde abarrotada de “ex-votos”, de onde se divisava a imensidão do vale (4). Aquela subida foi a coisa mais difícil que experimentei até então, na minha fácil jovem vida. Conclui que odiava montanhas e prometi a mim mesma que nunca mais escalaria uma.
“IK HEB BOVEN DE ALPEN GEVLOGEN” (5)
Viver na Europa do Norte implica voar muitas vezes sobre os Alpes e seus abstratos picos nevados, mas tive que ir mesmo à Suíça para estar, finalmente, na presença de montanhas verdadeiramente altas. Protuberâncias na paisagem com seus corpos volumosos, seu peso e suas sombras, como dinossauros adormecidos cujas respirações praticamente pulsavam dentro do chalé onde estava hospedada. Foi ali que experimentei a montanha como um evento estético massivo (e uma presença física literalmente sufocante). Mas até então, admito, não sabia o que era uma montanha, alem da ideia pueril de montanha que povoa o imaginário popular-ancestral, do tipo que ilustrava os calendários pendurados na parede da casa de minha avó. Não sei por que razão as montanhas suíças eram o tema favorito daquelas publicações distribuídas pelas empresas nos anos 60 e 70, no Brasil. Como nenhuma imagem é inocente, me pergunto agora com que intenção aquelas paisagens idealizadas eram recorrentemente - ano após ano - distribuídas à pessoas como minha avó.
E justamente porque imagens jamais são inocentes... foi assim que um dia apareceu na tv holandesa a imagem de uma rocha negra de granito ou material similar, um volume superlativo que se projetava para o alto, durante a fala de um velhinho, pequenino e frágil. Levei algum tempo para compreender que o homenzinho havia criado a rocha e instantaneamente me ocorreu, por alguma associação totalmente inconsciente, que aquele volume ele o havia tirado de dentro de si mesmo, arrancando-o de suas entranhas e materializando-o naquela escultura, cuja única função era livra-lo de carregar seu peso sufocante.
ACIDENTE E ENIGMA
A montanha é um enigma que segue desafiando não apenas a mim. São incontáveis os artistas que confrontaram-se com tal enigma. Sua presença em forma, peso, volume, seu potencial metafórico de obstáculo, desafio, sonho ou mistério, são recorrentes em praticamente todos os períodos artísticos, assim como na literatura, no cinema e na mitologia. Onde morariam os deuses, senão no topo da mais alta das montanhas? Para o alemão Thomas Mann(6), no seu livro - não por acaso super volumoso - “A Montanha Mágica", ela é um estado de alma, um sentimento suspenso, “mágico”, fora do tempo. Para outros, é obstinação e potência. Com a obra “Quando a fé move montanhas”, o artista belga Francis Alÿs(7) realizou um trabalho épico, ao remover o topo de uma montanha de seu local original, com a ajuda de 500 voluntários equipados com pás, numa cidadezinha do Peru. A “land-art” de caráter efêmero (já que o deslocamento de algumas polegadas sequer seria notado logo depois de realizado) foi um protesto contra a opressão naquele país da América do Sul.
A MONTANHA NO SÓTÃO
Pensada como instalação, a “montanha” que venho construindo no sótão de minha casa situa-se, no seu estágio atual, em algum lugar entre a escultura e a maquete. “Sem lugar fixo, excluída de qualquer ideia de representação temporal, realiza-se num “lugar de construção” não-permanente”(8). Iniciada quase ao mesmo tempo que o semestre letivo, foi montada com “tela de galinheiro” + madeira + tecido + cola + tinta. Contando abandonos e retornos, a peça ocupa solitária boa parte de um quarto, no meio da nossa vida cotidiana. Nosso gato a rodeia, intrigado por ela, brinca com pedaços de arame perdidos, penetra na sua estrutura, que se revela um abrigo hostil (pontas e arestas que não foram aparadas, permanecem afiadas). Ela está lá e em breve estará finalizada, registrarei sua existência, a ser demarcada por video e fotografias, depois a desmontarei. Terei me apropriado dela como um amontoado de ideias e de desejos agora estruturados e nela contidos, domando-a, imprimindo- lhe uma forma, ensaiando uma própria linguagem - uma vitória simbólica (sobre o sistema). No fim, é apenas a presença magica do objeto inútil e silencioso no meio do quarto.
Minha montanha estará vencida? Ou será que, como o cineasta japonês Akira Kurosawa (9) - e todos os montanhistas - passarei a acreditar que o melhor cenário é sempre a próxima montanha? (É possível que tenha me tornado uma amante de montanhas?)
REFERÊNCIAS
1 - Expressão bíblica, referente ao discurso de Jesus Cristo; obra de Cildo Meireles;
2 - (1896-1897) Revolta político-religiosa no sertão daBahia, massacrada pelo exército brasileiro;
3 - (1960s-1970s) Gênero de cinema vanguardista surgido na Bahia-Brasil com ênfase em igualdade e justiça social (não confundir com o “Novo Cinema” surgido em Portugal entre 1963-1974;
4 - Objeto votivo ofertado aos santos e divindades;
5 - "Eu voei sobre os Alpes” frase poética em holandês encontrada em um desenho de autoria desconhecida representando os picos dos Alpes vistos de cima;
6 - Mann, Thomas. A Montanha Mágica, 1924;
7 - Francis Alÿs, artista multimedia belga;
8 - Krauss, Rosalind “A escultura no campo expandido”, artigo. Citação não-literal.
9 - Akira Kurosawa (1936-1993), cineasta japonês.
FIGURAS
1 - Neyde Lantyer. A montanha da/o artista”. Mixed media, 2020;
2 - Monte Santo, sem créditos. Fonte: internet
3 - Neyde Lantyer. “If I had known about it”, Mixed media sobre fotografia;
4 - Francis Alys, “A fé remove montanhas”.