A AVÓ (O SOCO)
Crônica, 2011
A AVÓ (O SOCO)
Minha avó de criação era uma refinada contadora de estórias cujos bichos falantes, bruxas e princesas mortas-vivas nos abismavam todas as noites. Fascinante também era o repetido relato de seu marido Eduardo sobre a escuridão e de repente a luz e os dois trens se chocando dentro do túnel. O marido de minha avó fora maquinista da Leste Brasileira, “encostado” por invalidez em conseqüência do terrível acidente cuja narrativa não tinha fim, devido à espera eterna pela indenização que, até o dia de sua morte, nunca chegou. No ano em que completei 10 anos, passamos um longo período, eu e meu irmão, hospedados com eles. Ficar com minha avó e Duardo, como o chamávamos, era experiência saborosa, povoada de banhos de rio, almoços com galinha ao molho pardo, tardes costurando roupinhas de boneca com muitos suspiros, cocadas-puxa e doces de compota, no lanche. Alem de tudo, havia ainda a mágica proximidade do Chalet com seus jardins, bosques e lagoa, seus muros, seus portões, seus avarandados e suas escadarias. Dormíamos, os dois, na grande cama art deco das núpcias de nossos pais, que minha avó herdara, com sua cabeceira de madeira pesada, curva, lustrosa e nobre e seu vultoso colchão de molas, de forro de rico tecido verde musgo e castanho, protegidos sob mosqueteiros contra os inevitáveis insetos que me aterrorizavam. Nos sentíamos amados, embora a saudade de minha mãe, que permanecia em Salvador acompanhando meu pai hospitalizado, fosse constante, e a sombra da morte iminente dele, mesmo que silenciosa, já nos rondasse. Uma noite, enquanto dormia, senti um brutal impacto no estômago. Gritei, mas o grito saiu para dentro, surdo, ao tempo em que eu me curvava aos prantos de desespero. Meu irmão havia me dado um soco durante o sono, embora continuasse a dormir como um anjinho. Minha avó veio correndo em meu socorro e me levou para sua cama, no quarto dela e de Duardo. No dia seguinte meu irmão duvidou, não tinha nenhuma memória do ocorrido, e riu de mim com seu riso de menino. A dor e o medo do imprevisível permaneceram no meu sistema, emudecidos. Não muito tempo depois, chegou a notícia de que meu pai tinha morrido.
Minha avó de criação era uma refinada contadora de estórias cujos bichos falantes, bruxas e princesas mortas-vivas nos abismavam todas as noites. Fascinante também era o repetido relato de seu marido Eduardo sobre a escuridão e de repente a luz e os dois trens se chocando dentro do túnel. O marido de minha avó fora maquinista da Leste Brasileira, “encostado” por invalidez em conseqüência do terrível acidente cuja narrativa não tinha fim, devido à espera eterna pela indenização que, até o dia de sua morte, nunca chegou. No ano em que completei 10 anos, passamos um longo período, eu e meu irmão, hospedados com eles. Ficar com minha avó e Duardo, como o chamávamos, era experiência saborosa, povoada de banhos de rio, almoços com galinha ao molho pardo, tardes costurando roupinhas de boneca com muitos suspiros, cocadas-puxa e doces de compota, no lanche. Alem de tudo, havia ainda a mágica proximidade do Chalet com seus jardins, bosques e lagoa, seus muros, seus portões, seus avarandados e suas escadarias. Dormíamos, os dois, na grande cama art deco das núpcias de nossos pais, que minha avó herdara, com sua cabeceira de madeira pesada, curva, lustrosa e nobre e seu vultoso colchão de molas, de forro de rico tecido verde musgo e castanho, protegidos sob mosqueteiros contra os inevitáveis insetos que me aterrorizavam. Nos sentíamos amados, embora a saudade de minha mãe, que permanecia em Salvador acompanhando meu pai hospitalizado, fosse constante, e a sombra da morte iminente dele, mesmo que silenciosa, já nos rondasse. Uma noite, enquanto dormia, senti um brutal impacto no estômago. Gritei, mas o grito saiu para dentro, surdo, ao tempo em que eu me curvava aos prantos de desespero. Meu irmão havia me dado um soco durante o sono, embora continuasse a dormir como um anjinho. Minha avó veio correndo em meu socorro e me levou para sua cama, no quarto dela e de Duardo. No dia seguinte meu irmão duvidou, não tinha nenhuma memória do ocorrido, e riu de mim com seu riso de menino. A dor e o medo do imprevisível permaneceram no meu sistema, emudecidos. Não muito tempo depois, chegou a notícia de que meu pai tinha morrido.